Aracaju, 24 de abril de 2024
Search

Artigo – UMA PRECE PELA SORTE DA HUMANIDADE, ESCREVE DELEGADO PAULO MÁRCIO

No poema Congresso Internacional do Medo, Carlos Drummond de Andrade principia com um lamento, uma angústia, sentimentos tão presentes naquele período obscuro e “sem horizontes” dos anos 30 e 40 (época da Segunda Guerra Mundial): “Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos/Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços…”.
No entanto, é o arremate, em tom dramaticamente profético, o que me faz, ainda hoje, sentir calafrios só em lembrar tão forte imagem: “cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,/
depois morreremos de medo/
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”
Tanta melancolia nos leva a indagar se pode o medo, realmente, ceifar mais vidas do que as moléstias em si, do que as guerras, do que a fome, do que os desastres naturais, como certa feita confessou a própria peste ao Mulla Nasrudin, ao reencontrá-lo depois de uma bem-sucedida colheita em Bagdá?
A morte (fato) e o medo da morte (não qualquer medo, mas o temor patológico) às vezes se fundem no inconsciente individual ou coletivo, para então emergirem sob a forma de algo novo, apavorante, invencível.
O Japão, humilhado e destruído por dois artefatos nucleares lançados pelos Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki, a 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, mergulhou numa profunda depressão. O medo entranhou-se na alma do povo japonês, mudou para sempre sua forma de ver o mundo, a vida, a morte e a guerra.
A lembrança dolorosa e latejante de milhares de corpos pulverizados e de um império supostamente invencível reduzido a cinzas, aliada ao temor de uma nova hecatombe nuclear, projetou-se e ganhou forma em uma criatura que, paradoxalmente, personifica a morte em sua face mais cruel e inescapável: o monstro Godzilla – uma metáfora dos Estados Unidos marchando impiedosamente sobre o solo japonês.
A despeito do nível civilizatório que atingimos e do fato de estarmos vivenciando os primeiros dias de uma quarta revolução industrial, nossa relação com a morte – e em especial com as ameaças de extermínio de toda a espécie – não é muito diferente daquela experimentada por um aldeão da Idade Média diante da notícia do alastramento de uma nova e desconhecida praga. “O fim do mundo está próximo”, gritam-nos dois milênios de cristianismo profundamente enraizados em nosso espírito.
Das profecias antigas às ficções atuais, a varredura da espécie humana da face da terra, mais dia menos dia, é algo que nos persegue e atemoriza, mas que também nos fascina de uma maneira inexlicavelmente mórbida. Talvez não tão inexplicável assim, desde que concordemos com Sigmund Freud acerca da existência de uma pulsão de morte (Thanatos) em todos nós – não isoladamente, compreenda-se, mas em equilíbrio com a pulsão de vida (Eros) que nos é igualmente inerente.
E de todas as distopias existentes, as mais populares e inquietantes são justamente aquelas que nos apresentam o colapso civilizatório provocado por um apocalipse zumbi. Fãs de séries como The Walking Dead, por exemplo, meio que perplexos pouco pouco vamos perdendo o medo e nos familiarizando com os mortos vivos – bandos de infelizes sem consciência ou vontade, movidos por uma fome irrefreável que sequer pode ser atribuída a um instinto. Não raro nos apiedamos dos caminhantes, a quem não foi concedida “a paz das estepes, a paz dos descampados, a paz da paz.”
A perplexidade, portanto, vem da constatação de que, mesmo à beira da extinção, parte considerável dos habitantes desse novo mundo sem leis, governos, cultura, religião ou quaisquer lastros civilizatórios deixa-se dominar pelo primitivismo atávico e dá vazão aos mais torpes e repulsivos impulsos.
Mas não é necessário estarmos cercados por hordas de zumbis famintos para sabermos como será o comportamento de nossa espécie na hipótese de um colapso humanitário ou civilizatório. O nível de degenerescência ética que atingiremos deixa-se antever diante de qualquer ameaça mais grave à ordem político-econômica. Não demora, os discursos inicialmente humanitários cedem ao utilitarismo mais cínico e cruel. Não importa que, para a manutenção do sistema, vidas humanas sejam consumidas como carvão alimentando fornos e caldeiras. O importante é produzir, abastecer, consumir, manter a economia aquecida, as bolsas de valores abrindo e fechando em alta.
Mas nessas horas também há muita solidariedade, o que não se confunde com doações ou assistencialismo a distância – mecanismos psicológicos para deixar o individuo em paz com a sua consciência. A solidariedade de verdade é aquela vivenciada nos guetos, nas ruas, nas favelas, onde ninguém sabe o que é taxação de grandes fortunas ou programa de renda mínima, mas quase todo mundo se importa com os velhos que não conseguem mais se locomover e com as crianças que ficaram sem creche ou escola, e cujos pais têm que sair para trabalhar em serviços não essenciais, enquanto os patrões assistem ao noticiário e descarregam em grupos on-line toda fúria e indignação contra governo, oposição e a imprensa sempre parcial.
A humanidade não sucumbirá ao novo vírus, assim como não sucumbiu a outras pestes do passado, ao nazismo, ao comunismo, às guerras, ao terrorismo e ao apocalipse nuclear tão temido nos anos da guerra fria.
Mas ninguém pense que estamos livre de um mal maior, em escala planetária, seja pela ação antrópica, seja por meio de acontecimentos naturais. Não há nem jamais haverá um seguro que garanta a existência e a continuidade de nossa espécie nesse lindo planeta situado na periferia da via láctea. Assim, enquanto ainda estamos vivos e conscientes, podemos e devemos nos dirigir aos céus e fazer uma prece pela sorte da humanidade, rogando ao Pai Eterno que tenha piedade de nós.
Paulo Márcio Ramos Cruz é delegado de polícia

Leia também