Aracaju, 24 de abril de 2024
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A religião política do bolsonarismo em plena Covid-19, escreve jornalista

ARTIGO

*Leandro Pereira Gomes.

Será que não existe o compadecimento cristão, vindo de quem mais se afirma cristão na era das mídias e redes digitais? Muitos parecem assim definir a si mesmos na intenção exclusiva de usar a palavra como gatilho político. O intuito? Talvez, tão somente, dar de ferro na cara de seus desafetos – sejam esses críticos, grupos minoritários ou instituições –, curiosamente aqui havendo uma certa preferência contra ações humanitárias.

Encontrarmos a nós mesmos num vergonhoso vale-tudo como esse, uma briga entre cães de rua ideológicos, e para quê? Todo tipo de defesa torpe é lançada, até mesmo sobre o sequestro de mercadorias destinadas para outros países em plena pandemia. “Se o outro lado é contra, seremos a favor”. É um capitalismo estranho, em defesa não do próprio interesse e da cooperação internacional, mas dos Estados Unidos, “nossos irmãos”.

Virou falácia o “quem paga mais, leva” – e sobrevive. A China produz cerca de 50% de todas as máscaras cirúrgicas que o mundo necessita, mas não é simplesmente pelo dinheiro pago por esse, entre tantos insumos – como os respiradores –, que os EUA garantem agora todo o estoque possível para si mesmos.

Este é o momento em que se evidencia: quem tem e mais utiliza do seu poder econômico, político e militar no mundo, embarga, pela ameaça, todos os outros e a própria ideia de capitalismo e livre mercado. Essa é a face do defensor do Ocidente na visão de tantos.

Sobre tudo isso, há ainda os que contribuem com discursos que ignoram a indignação mais legítima, chamando o novo mal que nos acomete de “gripezinha” e convocando as pessoas para um retorno imediato e imprudente das nossas atividades rotineiras nas ruas, lojas e fábricas.

É como se realmente fosse possível isolarmos os idosos num país como o Brasil, em que sete entre cada dez desses cidadãos moram com outras pessoas que não seus cônjuges. Fora os muitos jovens e adultos com algum problema de saúde mais grave, logo, potenciais vítimas dos chamados grupos de risco.

Na nossa realidade, muitas famílias não têm como evitar, em suas pequenas casas, o contato direto e diário com os seus entes queridos mais vulneráveis. E isso ocorre quando nossos maiores aliados atualmente, orgulham-se em dizer o que fazem também no total sentido contrário de nós mesmos. Com o seu próprio isolamento no momento, mais e mais restritivo.

Parece vivermos numa nova modalidade de “cristandade”, que tranquiliza seus conterrâneos contrariando qualquer senso de humanidade frente ao restante do mundo com seus discursos e ações. Tranquiliza através do desespero do outro. Uma espiritualidade que aponta para as vítimas fatais desse vírus e que também justifica: “esse era velho”, “aquele era diabético”, “o outro era hipertenso”.

Nada disso importa mesmo para quem não se importa com argumentos, para quem despreza a empatia exigida para o momento e a verdade de que essas pessoas que estão morrendo poderiam viver duas dezenas de anos ou mais. É como se estivéssemos em uma versão que trata a doença e reconhece quem pode ou não pode morrer saída do filme O Poço, sobre o qual tantos estão falando.

Por interesse ideológico, e de alinhamento com “amigos”, o trumpismo vai mostrando o quanto pode ser canalha e desprezível, condizendo com aquilo que mais era falado pelos seus críticos mesmo antes de Trump chegar ao poder. Quanto a nossa versão abrasileirada desse fenômeno, mostra o mesmo ao aplaudir e “entender” com carinho fraternal não retribuído, quando, é claro, não trata como histeria. Quem é ignorante, quem é canalha, quem está certo ou errado? Você mesmo pode chegar à resposta.

Tragicamente, o que muitos demonstram, neste momento, são as suas torcidas fanatizadas, e quanto eles podem não ser melhores que quaisquer alternativas anteriores. Se o valer-se de binarismos legitima na doença que se não fossem eles, seria coisa pior, é só até certo ponto que pode muito bem ser ultrapassado.

O mal que mais nos acomete seria o complexo de vira-lata, a expressão criada pelo dramaturgo e escritor brasileiro Nelson Rodrigues? Seria arrogância, para reconhecer o quanto se foi feito de trouxa, ou seria simplesmente vaidade para assumir a própria porcaria que vem se tornando e aceitando? Talvez, para os pseudo-religiosos, seja tarde para reconhecer em vida o quanto pecaram, e alguns peçam perdão ao Divino nos seus últimos momentos na Terra. Esses, é claro, são os que em vida já valeram alguma coisa, mas não acordaram.

O termo “religião política” foi cunhado pelo filósofo e cientista político alemão, Eric Voegelin. Ele é principal base teórica para os ‘intelectuais’ por trás de Bolsonaro e Olavo de Carvalho.

* Leandro Pereira Gomes. É jornalista, redator freelancer e assessor para assuntos de Tecnologia da Informação no Portal JLPolítica.

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