Aracaju, 14 de setembro de 2025
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Quando a crítica política vira machismo: o caso da deputada Kitty Lima com o fim das carroças de tração animal

ARTIGO

Nos últimos dias fui instado a analisar uma nova série de postagens nas redes sociais que debatem um tema socialmente sensível: o fim das carroças de tração animal. Contudo, o debate tem transbordado sua delicadeza social e política e alcançado também a própria atuação parlamentar da deputada Kitty Lima, refletindo, de maneira mais ampla, a forma como a sociedade encara a presença feminina no espaço político. Essa constatação decorre diretamente do conteúdo das “críticas” proferidas por um senhor que se apresenta publicamente como representante de uma associação de carroceiros. Essa postagem, escolhida aqui como paradigma de tantas outras, camufla, sob a mistura de inteligência, sarcasmo e crítica política legítima, um tom ameaçador, preconceituoso e machista. Essa conclusão se extrai de frases de efeito no imperativo, dirigidas à deputada, como “Deputada, seja mulher” e “seja deputada de verdade”. Partindo de um vídeo que anuncia ser de outro Estado da Federação, insinua que a parlamentar criminaliza os carroceiros e termina, em tom firme e com dição de locutor, afirmando: “vou reeducar a deputada Kitty Lima”.

Resta agora analisar se tais manifestações se limitam a críticas políticas legítimas. Ao afirmar que pretende “corrigi-la”, o sujeito busca “enquadrá-la”. Ao dizer que a parlamentar deveria “ser mulher” ou “ser uma deputada de verdade”, o discurso revela muito mais do que uma divergência sobre políticas públicas: revela um viés de gênero que ainda persiste em nossa cultura política. Resta ainda indagar: se a deputada fosse homem, ouviria como crítica a expressão “seja homem”? Ou a sua atuação seria enfrentada apenas no campo das ideias, sem a tentativa de deslegitimá-la por sua condição de gênero? Essa inversão de perspectiva revela o duplo padrão com que a sociedade encara homens e mulheres na política. O que para eles é enfrentamento, para elas muitas vezes é tratado como fraqueza, inadequação ou até incapacidade.

É sabido que a deputada Kitty Lima defende há anos a substituição do uso de animais em veículos de tração, como as carroças. Não se trata de extinguir o trabalho dos carroceiros, mas de qualificá-los, oferecer alternativas dignas e sustentáveis e promover sua inserção em novas modalidades de serviço, como carroças motorizadas ou atividades correlatas. O objetivo central é duplo: proteger os animais do sofrimento e garantir que trabalhadores não sejam abandonados à própria sorte, mas amparados em programas de capacitação e reinserção. Essa pauta, sensível e polêmica, já gerou ameaças e hostilidades no passado. Agora, volta a ser utilizada como pretexto para manifestações que, sob a capa da crítica política, trazem embutido um conteúdo discriminatório contra a condição feminina da parlamentar.

A democracia exige e acolhe críticas aos representantes eleitos. Projetos de lei, posições políticas e gestões parlamentares estão — e devem estar — sujeitos ao crivo da sociedade. No entanto, há uma linha clara que separa a crítica política da violência de gênero. Quando o discurso assume o viés de desqualificar a mulher por ser mulher, insinuando que sua atuação só teria legitimidade se ela fosse “de verdade” ou “mais mulher”, não se está mais debatendo ideias. Está-se reforçando estereótipos que, historicamente, afastaram as mulheres do exercício do poder.

Esse fenômeno não é novo. Outras parlamentares, como Linda Brasil, também foram alvo de manifestações semelhantes, revelando como a política ainda é um ambiente hostil à presença feminina. A Lei nº 14.192/2021, que trata da violência política de gênero, foi justamente concebida para enfrentar essas práticas, garantindo que mulheres possam exercer seus mandatos sem serem alvo de ofensas baseadas em sua condição de gênero.

O episódio com a deputada Kitty Lima deve ser lido à luz de um desafio maior: como superar o machismo entranhado em nossas práticas políticas e sociais? Não basta apenas garantir cotas eleitorais ou ampliar a presença feminina no Parlamento. É preciso mudar a forma como se enxerga a atuação dessas mulheres. Quando uma deputada é chamada de “Adalgiza” — em alusão a uma canção que retrata alguém sem coração — ou quando se questiona sua coragem política com base em sua condição de mulher, a mensagem implícita é a de que não basta ser competente, atuante e corajosa: para muitos, o simples fato de ser mulher já é visto como fragilidade ou defeito.

A crítica às ideias da deputada Kitty Lima pode e deve ser feita dentro dos parâmetros democráticos. O debate sobre a substituição das carroças é legítimo, envolve interesses diversos e merece ser conduzido com seriedade. Mas o que não se pode admitir é que esse debate seja contaminado por machismo, estereótipos de gênero e insinuações que deslegitimam a parlamentar por ser mulher. Defender a causa animal, propor alternativas para os carroceiros e ocupar espaços de liderança política não são atributos de gênero: são atributos de coragem, compromisso e responsabilidade pública. E esses atributos não têm sexo.

A democracia brasileira só será madura e plena quando mulheres como Kitty Lima puderem exercer seus mandatos sem a obrigação diária de provar que são “de verdade”. O verdadeiro teste democrático não é medir a coragem de uma deputada por seu gênero, mas a coragem de uma sociedade em superar, de uma vez por todas, os resquícios de machismo que ainda insistem em silenciar vozes femininas no espaço público.

Adir Machado

Advogado

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