Aracaju, 29 de março de 2024

PREFEITURA DE ARACAJU REFORÇA O PROTAGONISMO NEGRO

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Um corpo negro estranho ao espaço. Cento e trinta anos após o 13 de maio da assinatura da abolição da escravatura, conquista da insurgência incessante por parte dos escravizados, os lugares de proeminência ainda parecem pré-determinados. Se é mais comum ver este corpo, apenas por ser, como força de trabalho braçal ou como um perigo iminente parece óbvio que ações devem ser tomadas para mudar essa realidade. Desta maneira, o reconhecimento do protagonismo negro se apresenta como uma das alternativas para o trabalho hercúleo que é buscar uma sociedade com equidade racial. A Prefeitura de Aracaju atua como propositora de políticas públicas e acolhe como colaboradores, direta e indiretamente, pessoas cujo talento e representatividade são indispensáveis para a mudança.

O período pós-abolição não trouxe consigo a resolução de complexos problemas estruturais para a comunidade negra. Sem reforma agrária ou acesso à educação restou aos recém livres os postos mais baixos da nossa sociedade. Foi naturalizada a posição de subalternidade, cujo impacto na inconsciência coletiva brasileira perpetua-se até os dias de hoje.

Aqueles que ascendem para posições de destaque ou visibilidade pública são exemplos claríssimos do equívoco da noção de “democracia racial” no Brasil. Com Cássio Murilo Costa dos Santos, presidente da Fundação Cultural Cidade de Aracaju (Funcaju), é mais um caso. Sua avó Dona Maria Carmelina saía da colheita da palha da cana, em Capela, e deslocava-se até Aracaju para passar ferro na roupa das pessoas de boa condição financeira da cidade. Desta maneira ela criou três filhos, entre eles o pai do gestor.

A jornada dupla e extenuante da avó proporcionou uma educação aos seus filhos que não era regra para os seus contemporâneos. “Eu sou da segunda geração da minha família que frequentou a universidade, isso é digno de nota, pois todas as gerações anteriores foram privadas da educação. Além disso, muita contingência é que permitiu que eu esteja onde estou hoje. Daí já se retira o mito da meritocracia. Se o nosso país tem mais de cinco séculos de história e os afrodescendentes em sua maioria estão na segunda ou primeira geração a frequentar a universidade, algo está equivocado”, analisa Cássio.

A realidade perversa da falsa integração racial brasileira foi jogada na face do futuro presidente ainda na infância, enquanto um dos pouquíssimos negros a frequentar uma escola particular da capital. “Eu não me sentia representado, pois não havia pessoas com as mesmas características que as minhas naquele ambiente. Talvez por isso a minha identificação como negro não tenha vindo como afirmação, mas negação: eu não sou branco”,relembra.

As experiências, mesmo as expressamente mais traumáticas, como quando foi proibido de frequentar aulas de natação (o interpelaram: “você já viu negro nadador?”), ajudaram a fundamentar a necessidade de construção de seu trabalho. “Como gestão de política pública para a Cultura nós precisamos auscultar o que está acontecendo nos nossos territórios, sobretudo essa juventude negra que está produzindo muita coisa. É necessário conhecer essas manifestações, essas linguagens e dar voz a esses que muitas vezes estão sofrendo do etnocídio nos locais mais vulneráveis”, explica.

O racismo é o Brasil, é o que nós somos

Reconhecer a existência do racismo no país é de suma importância para o seu desenvolvimento, pois é através do conhecimento e de políticas que tratem de maneira séria do assunto que os talentos hoje desperdiçados no etnocídio que acomete as comunidades de maior vulnerabilidade social serão dissipados. O entendimento que a educação é a forma de promover a equidade social e o respeito aos direitos humanos é o que pauta o trabalho de Maíra Ielena, coordenadora de Políticas Educacionais para a Diversidade na rede de ensino municipal. A mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), também da segunda geração de sua família a acessar o ambiente acadêmico, viu a visão dos outros sobre si mudar na medida em que ganhava destaque dentro da administração.

“Comigo está acontecendo um fenômeno muito interessante: eu sempre fui tratada como negra na família, sem que isso fosse demérito, mas uma característica fenotípica, por outro lado, nos espaços sociais, escola e universidade, eu sempre fui ‘a morena’. Isso acontece, pois o racismo no Brasil é graduado, você merece um tratamento e até mesmo privilégios de acordo com tonalidade de sua pele. No meu processo de escolarização nunca sofri com o preconceito mais pesado e explícito quanto com colegas de tonalidade mais escura. No entanto, a partir do momento que eu comecei a ocupar um espaço de maior visibilidade e aparecer como uma mulher negra emancipada eu deixo o rótulo da “morena” e ocupo essa outra categoria, na visão da sociedade, por conta do público com quem trabalho e dos assuntos que trato”, ressalta.

A gestora se refere aos programas que leva às escolas do município, que buscam debater, diagnosticar e tratar de temas como o racismo, bullying, machismo e diretos dos LGBTQ. Dentro dessa realidade, seja trabalhando com alunos do 5° ano ou da Educação de Jovens e Adultos (EJA), ela se vê julgada o tempo todo por sua posição de destaque. “A mulher negra ainda é a parideira, a dos quadris largos, aquela cuja função é apenas nutrir a sociedade com mais e mais rebentos, a que é vista e elogiada com perplexidade diante de não estar na posição que consideram normal. Duvidam da nossa capacidade crítica, das nossas opções para a sociedade. Inclusive, quanto mais esclarecido é supostamente o ambiente mais esse tipo de situação acontece”, aponta.

Um dos projetos que Maíra e a equipe da Secretaria Municipal de Educação (Semed), em conjunto com a Secretaria Municipal da Assistência Social, leva é o “Lápis de Cor”, que dialoga com os alunos do 5° da rede municipal sobre igualdade étnico-racial. “No desenvolvimento do projeto algumas crianças até se chocam ao se autoindetificarem como negros, mesmo em um estado de maioria dessa etnia, e até negam sua identidade. O que buscamos é tratar dessa questão e reforçar a autoestima daquelas que já se identificam como negras, essas saem do limbo da representação e aprendem a se ver e retratar de uma forma diferenciada”, descreve Maíra.

No meio do processo de discussão sobre o tema depoimentos chocantes são colhidos. Um deles em especial deixou a gestora emocionada: durante uma roda de conversa um garoto negro descreveu o racismo como estudar no mesmo local desde pequenino e nunca ter sido abraçado. “O caso traz a reflexão. O que é necessário antes de tudo é empatia, se colocar no lugar do outro. Esse é o legado que queremos deixar com a promoção do diálogo e que é preciso lutar contra essa ideia de espaço reservado, quase que hereditário, é quebrar essa corrente”, indica a coordenadora.

Ação reparativa não é presente

Entender uma gestão pública que busca pela equidade racial dialoga com a concepção que o Estado precisa adentrar nas relações sociais e corrigir a desigualdade concreta submetida a um determinado grupo. Desta forma, a Prefeitura de Aracaju, através do prefeito Edvaldo Nogueira e como indicação do vereador Antônio Bittencourt, enviou à Câmara Municipal de Aracaju o Projeto de Lei que estabelece cotas raciais em concursos públicos no âmbito da administração da capital.

Bittencourt é líder do Executivo no parlamento e articula as ações da administração naquele espaço. Graduado em história e mestre em Comunicação e Cultura, possui trajetória política e acadêmica de notoriedade, ocupando espaços de poder, mas vistos, muitas vezes como “intrusos” pela sociedade.

Desta maneira, sua própria presença em um espaço considerado para pessoas brancas, ainda que de maneira velada, é um ato de revolução de costumes e uma batalha por aceitação, travada desde o início da escravidão. “Dada a circunstância do povo escravizado no Brasil só restavam duas opções: se submeter a mais desumana forma de domínio ou se rebelar. O povo negro é marcado pela rebelião, pela luta, pois é isso que faz com que o povo se liberte. No meio da expressão mais iníqua entre seres humanos, quando se define que um semelhante é coisa, sem sentido em si, mas apenas é o uso que dou a ela, é onde a batalha por igualdade se desenvolve”, comenta o líder.

A perpetuação da desigualdade e a batalha ainda tão dolorosamente atual por direitos básicos para a raça negra se dá por conta de uma herança deixada por uma parcela expressiva da população brasileira, sobretudo as classes dirigentes do país por séculos. No pensamento repassado por gerações, a miscigenação maculou a inventividade, inteligência, beleza e santidade do homem branco. “No final do século XIX e início do XX, parte expressiva da produção intelectual brasileiro buscava achar justificativas para o insucesso do país sob o ponto de vista econômico, político e social. Assim, ou a elite assumia sua incapacidade de administrar o país ou atribuía os problemas à nossa miscigenação”, explica Bittencourt.

Dada a realidade histórica, fica evidente que a construção social do tipo ideal é a do não-negro, que foi internalizado pela população e promove situações constantes de racismo explicito e disfarçado. “Certa feita, fui participar de um evento com o governador do estado, com a participação de secretários e ministros da Educação. No intervalo todos vamos almoçar em um restaurante. Enquanto passava pela entrada do estabelecimento, junto à comitiva, o porteiro se dirige a mim e fala: motorista é na outra porta. Quais os critérios que aquele cidadão utilizou para entender que eu, entre aqueles todos, não era uma ‘autoridade’ também? Na cabeça dele está culturalmente sedimentada essa perspectiva, como se houvesse papéis atribuídos à priori”, desabafa o parlamentar.

Por verem de perto que o preconceito no Brasil não é apenas de classe, mas também de cor, é unânime entre os entrevistados o entendimento de que a ocupação dos espaços é uma conquista, prova de insurgência e contestação da dominação do pensamento colonizador. A contribuição deles é que faz a Prefeitura de Aracaju perceber que a abolição não aconteceu por uma canetada, mas fruto da revolta, da busca dos negros por ter sua voz ouvida e seus direitos garantidos e, por assim entender, continuar trabalhando por um futuro melhor e uma sociedade onde os casos relatados não se repitam.

Foto Marco Vieira

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