Por J. Victor Fernandes*
O plano de soberania do País do Forró segue em curso, as guarnições sergipanas avançam no território junino com força, nas trincheiras da alegria. Nem os pulmões pipocando de catarro impedem a tropa de ocupar as plateias, bem treinadas na arte do ariar fivela e do rela-bucho, apetite etílico, pés ligeiros e cinturas rebolativas prontas para o embate. Há quem diga que estão fazendo uso de armas químicas!
Calma, talvez seja teoria da conspiração, mas eu resido bem perto do Arraiá do Povo, e na última terça do Arrocha — da qual me fiz ausente por compromissos matinais inadiáveis e um fígado traumatizado — havia uma fumaça orvalhada no ar que cheirava a vodka, gim, aguardente, energético e perfume daqueles que uma moça tenta entregar uma amostra em shoppings, galerias e calçadões. Foi por pouco. Quando dei por mim, já estava no portão com os quadris nervosos. Voltei e me tranquei. Quase fui pego pela magia almiscarada, alquimia de Slova, Corote azul, Rocks e Night Blue de melancia.
É bem verdade que minha ausência na esbórnia não se dá apenas por razões hepáticas ou compromissos; é que a vida de produtor cultural maltrata os aparelhos sensoriais do cabra. São muitas horas de exposição ao som, músicas repetidas, luzes — tudo em máximo foco pela entrega do melhor resultado. Um terço do caminho no calendário de festas e abro uma gaveta e ouço: “Quem é você pra derrubar meu mungunzá?”. Abro o guarda-roupa: “Oh, meu vaqueiro, meu peão!”. Fecho os olhos: “Coração, para que se apaixonou!”. No banho, me pego cantando Mestrinho (lá ele!): “Eu e você somos um só!”.
Devaneios à parte, descanso e lazer passaram a ser momentos mais silenciosos, por questão de saúde mesmo. Tem dias em que o ouvido dói e/ou fica zunindo. A perda da audição devido à exposição ao ruído cotidiano da área profissional é lenta e progressiva. Porém, uma vez que acontece e acontece, não tem volta.
Trabalhe enquanto eles dormem, literalmente. O proletário da arte vê e vive coisas magníficas, mas tudo isso é muito intenso, fisicamente desgastante, cobra um preço. Num multiverso em que o produtor, em regra, tivesse direitos trabalhistas reconhecidos, era para ter insalubridade também — feito mergulhador de plataforma — se aposentar mais cedo até. Obreiros da arte, escafandristas abissais dessa zorra de tempo bagunçado.
Respeitável público! No final, todo artista e produtor que está “no corre” regional carrega um pouco da aura do palhaço: cansado, bufão, com o nariz vermelho de rinite, pagando mico, rindo de nervoso, mas encarando o picadeiro imbuído da missão. Afinal, é o mundo se acabando, polarização política, o cachê perdendo o valor de compra, a frustração com os editais, que seguem deixando muita gente boa e necessária de fora da panela; outros, igualmente capazes, ficaram fora dos palcos da prefeitura e do governo. Em que pese — e justiça seja feita — para quem está alheio às demandas históricas dos artistas, a festa está muito bonita: ótimas atrações, os palcos nos bairros foram uma acertada, segurança, famílias curtindo, um clima até de nostalgia.
Acaba não, mundão! Tornava eu para casa depois de uma semana de maratona — produção todos os dias e três dias julgando quadrilhas, dormindo em média três horas por noite — finalmente iria descansar. Que luxo! Longe de assentar todas as experiências, ouvindo o eco dissonante de canções e conversas. Naquele dia, o céu cinza-chumbo pesava, ventos ligeiros feito barcos de fogo rasgavam o céu, que não demorou a desabar. No dia anterior, os shows já haviam sido adiados por medida de segurança. O povo chiou: queriam forró. Nas redes, Noé de IA, mulher reclamando que os homens daqui não chamam para dançar, e gente tirando os casacos de neve do armário. Nas notícias, massacre em Gaza, ataque de Israel, míssil hipersônico do Irã, mortes e mais mortes, ameaça nuclear requentada. Bolsonaro chamando Xandão para ser vice. Eis que cochilei.
Foi um daqueles sonhos em que você está tão imerso e cansado que compra a viagem: chovia torrencialmente e não cancelaram os shows, o povo dançava já com água nas canelas. Na beira da praia, arcas enormes desembarcavam casais vestindo preto. O furacão Serigy estava prestes a passar pela costa. No palco, estavam todos os artistas da terra — os escolhidos e os não escolhidos, os que são amigos, talaricos e inimigos — todos os gestores abraçados: situação, oposição, os que sempre estão. Eu sabia, era o fim. O céu clareou — “olha pro céu, meu amor!” — mísseis cadentes apontavam no firmamento. Soava um alarme estridente, enquanto todos tocavam e cantavam: Sergipe é o País do Forró! Sumimos do mapa feito Macondo.
Acordei suado, com a vista embaçada. O celular alardeava: Alerta de Emergência em letras garrafais. Fora um teste da Defesa Civil em alguns municípios do estado. Dei graças ao meu santinho por acordar. Estava na hora de voltar ao trabalho — “Quando chega o mês de junho, na Rua de São João…” — cantarolei. Inclusive, manda jobs! Quer dizer, job não pode mais, manda trabalho!
* J. Victor Fernandes é produtor cultural e escritor